Marcos Silva e Claudia Ricci, dois dos especialistas a elaborarem a BNC de História respondem a Renato Janine.

História na BNC

O BRASIL NO MUNDO, O MUNDO NO BRASIL

“Já conheço as pedras do caminho”
(Tom Jobim e Chico Buarque, “Retrato em branco e preto”)

Renato Janine Ribeiro é um intelectual culto e merecedor de respeito. Seus comentários sobre Ensino de História merecem toda atenção e respostas de quem participa desse campo de conhecimento como profissional em diferentes graus de ensino e pesquisa.
É importante destacar que o texto analisado por Renato foi elaborado por uma equipe convidada pelo MEC. Acreditamos que o convite foi feito com base em reconhecidos méritos da equipe – o então ministro, por motivos éticos, jamais patrocinaria uma ação entre amigos. O texto foi divulgado pelo mesmo MEC. Daí, não poder ser encarado como opinião pessoal de cada membro do grupo nem mesmo como postura exclusiva do grupo, ele é do MEC, sim. Certamente, ele é uma versão preliminar e pouco didática, dando lugar a incompreensões de leitores, inclusive pessoas altamente qualificadas, como Renato.
Uma deficiência didática do texto, que gera equívocos de leitura graves, é não deixar absolutamente claro que enfatizar Brasil não significa ignorar Mundo. Deixando de lado as pesquisas de Varnhagen, no século XIX, em arquivos europeus, em busca de documentação atinente à História do Brasil, autores clássicos mais recentes, como Caio Prado Jr. (Evolução política do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo) e Fernando Novais (Portugal e Brasil na crise do Antigo Regime Colonial) deixam escancaradamente claro que falar em Brasil é também falar em Mundo, a colonização existe nos quadros da política econômica europeia da modernidade etc. Novais, posteriormente, num dos ensaios do volume Cotidiano e vida privada na América portuguesa, realçou a grande importância ideológica do Catolicismo na experiência colonial, sacralizador da posse sobre terras e gentes. É impossível discutir Catolicismo sem pensar nas Antiguidades hebraica, grega e romana, bem como nas Antiguidades de Egito e Mesopotâmia. Nós, autores do texto preliminar de História da BNC, com absoluta certeza, lemos Prado Jr. e Novais (em algum momento da formação e/ou atuação acadêmica em História), sabemos desses laços profundos Brasil/Mundo, entre presente e diferentes camadas de experiência histórica no passado
Por que, então, enfatizar Brasil e África?
Sobre África, existe exigência legal, que Renato bem conhece, além de exigência ética – mais de 50% da população brasileira é afrodescendente, de acordo com o Censo de 2010. Isso não é ideologia. Ideologia é fazer de conta que somos Europa bronzeada.
Sobre Brasil, entendemos que o texto explicitou lugar e tempo a partir de onde historiadores e professores (mais alunos) falam: somos brasileiros, o Ensino de História é consciência de si, que não renuncia à consciência sobre os outros – outras épocas e outros espaços: Rimbaud nos ensinou que “O Eu é um Outro”.
O texto, em seu escasso didatismo e em sua forma tão preliminar, não explica porque não partiu de uma cronologia ortodoxa, porque não começou do aparente começo (“mito das origens”, de acordo com o grande clássico Marc Bloch – Apologia da História ou ofício de historiador). Existem críticas a essa cronologia ortodoxa (o livro Devemos fazer tabula-rasa do passado, de Jean Chesneaux, tece comentários bem humorados sobre seu teor de dominação política secular). Ela significa dizer que tudo deriva de uma só matriz mundial – Europa -, ótimo argumento ideológico para justificar a dominação europeia sobre o mundo. China e Índia antigas somem desse panorama, África aparece como dotada de homens equiparados à fauna (o tema aparece em Hegel) etc.
Escapar criticamente da cronologia ortodoxa não significa ignorar cronologias (no plural, sim) nem seus respectivos conteúdos. Jamais prescindiremos de Grécia Antiga. Mas essa necessidade não tem cunho burocrático, ela se insere em problemas de conhecimento – aquela Grécia está em nós, metamorfoseada por tantas outras experiências.
Renato expressa o desejo de um ensino crítico de História, “mas sem descambar para a ideologia”. Infelizmente, a quase totalidade do ensino de História (e de outros componentes curriculares) está imersa em ideologia há muito tempo. O Renascimento, citado por Renato, é habitualmente ensinado como ideologia – idade de ouro e tópicos similares. É claro que todo cidadão deve ter o direito ao Renascimento como importantíssimo tópico de História, de preferência longe de fetiches, de preferência em efetivo contato com obras de pensamento e arte que alarguem nosso conhecimento, ao invés de nos fazerem adormecer num passado de glória.
Renato defende uma Educação democrática e de qualidade, valores que também defendemos plenamente. O texto que ele comenta faz parte desse universo. Pode ser melhorado, tudo pode ser melhorado. Descartá-lo, em nome do que ele não faz, é um desserviço para aquele universo.

Cláudia Sapag Ricci, asssessora do MEC da Área de Humanas da BNC é Professora Associada do Departamento de História da FAFICH/UFMG com exercício no Centro Pedagógico/UFMG. Pesquisadora do LABEPEH/CP/FAE/UFMG – Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre o Ensino de História. Teve o processo de discussão sobre a Proposta Curricular de História da CENP/SP nos anos 80 como objeto de pesquisa no mestrado, publicada no livro “Da intenção ao gesto: quem é quem no ensino de História em São Paulo, Ed.Annablume; Assessora da Proposta Curricular de História da Secretaria do Estado da Educação de Minas Gerais 2004; Coordenadora do projeto de pesquisa “O ensino de história como objeto de pesquisa: mapeamento de estudos e pesquisas” (Edital FAPEMIG nº 01/2012- Universal); Coordenadora do projeto de pesquisa do estágio pos doutoral na UMinho – Braga/PT 2014-2015 (Colonizar: eis questão! Os conhecimentos tácitos de alunos do Ensino Básico sobre a colonização portuguesa do Brasil).

Marcos Silva, especialista do MEC da Área de Humanas da BNC é Professor Titular de Metodologia da História na FFLCH/USP. Foi Assessor da Proposta Curricular de História da CENP/SP nos anos 80 e da Proposta Curricular de História da PMSP na década seguinte. publicou individualmente o livro História – O prazer em Ensino e Pesquisa, Ed. Brasiliense. Organizou as coletâneas Repensando a História, Ed. Marco Zero; Hstória em quadro-negro, Ed. Marco Zero; e História – Que Ensino é esse?, Ed, Papirus).

 

Posted 10/12/15 6:47 AM, 9 messages

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2 Comments to “Marcos Silva e Claudia Ricci, dois dos especialistas a elaborarem a BNC de História respondem a Renato Janine.”

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